Com a perspectiva de ir ao Brasil, decidi ler o livro que uma tia me emprestou quatro anos atrás. Em minha defesa, desde então não fui ao Rio de Janeiro, onde ela e o restante da minha família moram, e nem ela veio aqui (Em Portugal, onde eu moro). Mas pensei que essa deveria ser a chance de devolver o livro (lido) à dona.
Na hora em que me entregou, lembro dela ter mencionado qualquer coisa sobre uma forte melancolia na história. Ela não costuma desenvolver muitas explicações sobre os livros que me recomenda, às vezes sequer faz uma apresentação. Solta só um ou dois adjetivos, um deles sendo palavrão, prolongando a pronúncia da última sílaba para expressar o entusiasmo, e diz “lê”. Assim, às cegas, sem muita referência, fui apresentado a porradas literárias como Henry Miller, Hilda Hilst, Michel Houellebecq, mais recentemente Benjamín Labatut e, agora, Cornélio Penna.
É por essas e por outras que quando fazemos um Zoom, antes da conversa acabar, eu passo o chapéu: E aí, está lendo alguma coisa incrível? E séries? Tá assistindo alguma coisa que vale a pena? Tem qualquer coisa boa para recomendar depois da gente passar horas se queixando que o mundo ainda vai piorar muito antes de melhorar? Porque não é só na área da literatura que as dicas são quentes. É também boa em indicar séries e filmes. Foi ela quem me levou ao cinema, ainda adolescente, para ver Caetano Veloso cantando Cucurrucucu Paloma em Fale com Ela. Foi ela quem me apresentou a matança de Cães de Aluguel. Agora está numa fase de assistir séries sobre crimes em pequenas cidades da Escandinávia, onde só tem luz uma vez por ano. Herdei The Bridge, que está na lista.
Para minha sorte, tenho outra tia, a irmã dela, que também só dá tiro certo. Foi ela quem me apresentou a gente como José Saramago (não, pessoalmente). E foi em certa medida por culpa dela que me vi chorando num ônibus lotado, em um engarrafamento na Avenida Brasil seis da tarde, onde terminei de ler Precisamos Falar Sobre Kevin. Foi também ela quem colocou no meu caminho Cinema Paradiso, Notas sobre um escândalo e Método Kominsky. No fim das contas, essas duas tias são o algoritmo ideal. Apresentam só coisa que presta, e, diferente do algoritmo das redes, não subestima a minha inteligência.
O livro emprestado se chama A Menina Morta, um romance publicado em 1954. A edição que li é a segunda, da Livraria José Olympio Editora, de 1970. Nunca tinha ouvido falar no livro. Nunca tinha ouvido falar em Cornélio Penna. A história acontece no século XIX, em uma fazenda onde o cotidiano é profundamente alterado depois da morte da filha caçula dos fazendeiros, ainda criança. Na segunda metade, uma das personagens resume bem o sentimento geral que atravessa a história: “(...) Desde a morte da menina parece que nesta casa alguma coisa se quebrou, e tôda ela está ameaçando desabamento…”
Quem lê acompanha, pela rotina mais corriqueira das mulheres que administram a casa (primas, tias, governantas, mulheres escravizadas), o declínio lento e silencioso da fazenda. Quando a menina morre, sobra um vazio atordoante. Os cuidados, a dedicação a ela, eram o que parecia dar sentido, conforto e graça à vida dessas mulheres. Sem a presença da criança, ficam desamparadas, sem rumo, divididas entre as tarefas domésticas e as práticas religiosas. O distanciamento dos senhores, também afetados pela depressão que se instala, é a fonte para especulações, paranoias e medo.
A percepção de que está tudo desmoronando não vem de uma sucessão de grandes acontecimentos. Na verdade, muito pouco acontece. Vem do que não é dito, em descrições detalhadas de dias que começam e terminam com rezas, preparo de mesas e ambientes para receber visitas, banhos, costura, limpeza. Enquanto executam essas tarefas, as personagens especulam angustiadas sobre o que veem: um sistema de funcionamento que está ruindo diante delas. Nem a chegada da filha mais velha, vinda da Côrte, é capaz de restabelecer a antiga ordem. Ao contrário.
Escrito quando a televisão mal tinha chegado ao Brasil e a capacidade de atenção dos leitores devia ser maior do que a de hoje (ou pelo menos maior do que a minha), é um livro que pede tempo e paciência. Pelo que vi na internet, uma nova edição foi publicada pela Faria e Silva Editora, selo da Alta Books, e está disponível para venda na Amazon e no site deles. Não é publi. A única propaganda feita neste texto é das minhas tias. Mesmo assim, gratuita. Como recompensa, fico satisfeito com novas recomendações desse calibre.
Como segunda tia desse texto devo dizer:
1) Fiquei emocionada demais com a menção. Te amo muito, você é uma pessoa tremendamente especial.
2) Tenho lido vergonhosamente pouco, abandonei recentemente uma Ursula Le Guin no meio (no kindle), peguei um livro físico pra ver se embala, Vertigem, do W. G. Sebald, comecei, parece promissor, mas não engrenei ainda. Se for bom, te falo.
3) fiquei com ciúmes desses zooms aí. Por que é que a gente não se fala também, mais vezes? Vamos marcar?
muito feliz que você voltou pro Substack, Thiago! agora eu tô por aqui também. nossa tia já me recomendou Menina Morta também, mas não li ainda (agora, a indicação dupla reforça o dever de ler). e ela também me indica as coisas sem muitas explicações, mas eu tenho entendido um pouco o porquê, agora que estudo um certo psicanalista que ela leu muito na vida. ele dizia: "não se deve compreender muito rapidamente". é bem melhor entender devagar.