Não há lugar para o charme do mistério entre brasileiros imigrantes. A gente não se aguenta dentro das calças. É uma urgência em compartilhar a própria vida, a visão de mundo e a opinião sobre os impostos que são sempre melhor utilizados na Europa e nos Estados Unidos. “Aqui vira saúde, transporte público. No Brasil vira fundo eleitoral”. Em algum momento da vida você vai ouvir uma frase dessas sair da boca de um compatriota exilado. Se não ouvir, já sabe, é porque é você que estará falando.
Chegamos ao restaurante com a intenção de comer hambúrguer e batatas fritas. Fomos recebidos por Rodrigo, um sujeito simpático, vestindo macacão de mecânico para ornar com a decoração industrial nova-iorquina do lugar, que fica numa rua da cidade onde os vizinhos estendem roupas nas janelas.
De cara, Rodrigo nos perguntou se tínhamos o certificado de Covid. Eu ainda não tinha a segunda dose e precisei fazer o teste na hora. “Os caras estão colocando obstáculos para forçar o pessoal que não quer se vacinar e se vacinar. Dizem que vão passar a pedir até para entrar no supermercado. O cara não poder entrar no mercado? Aí ele vai tomar, né? Mas isso que eles estão mandando a gente fazer (pedir o certificado e exigir o teste na hora) é inconstitucional porque eu não tenho o conhecimento para avaliar esses documentos, mas a gente faz a nossa parte. Eu já tomei a primeira dose, quero logo tomar a segunda. O brasileiro tá louco para tomar logo as duas doses, mas tem gente aqui que não quer. Agora, esse teste que eles pedem não garante 100% que a pessoa não esteja infectada. Não é um PCR. Se você estiver infectado, o vírus pode estar agora num lugar do seu nariz que o cotonete talvez não tenha pegado.”
Nos quinze minutos que tive que esperar o resultado sair, Rodrigo nos deixou a par de que podem pedir o certificado de Covid para entrar no mercado, nos deu um parecer jurídico sobre as medidas do governo, mencionou a receptividade do brasileiro à vacina (amo que a gente se trata como “o brasileiro”, aquele que não sou eu, é sempre um outro estranho), pincelou uma explicação sobre o percurso de um vírus nas minhas fossas nasais e, por fim, depois de colocar a eficácia do teste em questão, quando o resultado negativo se confirmou, deu às boas-vindas ao restaurante dizendo: “parabéns, não vou precisar chamar a polícia para reportar um infectado!”
Entre o pedido de um hambúrguer com uma porção extra de maionese branca (ela pode ter outras cores dependendo do tempero - e da exposição ao sol), ele comentou que tinha morado nos Estados Unidos. Luiz respondeu que nós também. “Onde?” “Em Houston” “Rá!”, ele disse batendo a mão que segurava a caneta na perna. “Eu também!” E fomos mergulhados no passado recente de Rodrigo.
Ele estudou fotografia numa faculdade em Houston e trabalhou com fotografia de Real Estate, entre outros bicos. Tem uma conta na Wells Fargo e interesse em voltar para os Estados Unidos. Não ficou direto lá porque como estudante não tinha Social Security. Conheceu a esposa em Houston e tiveram um filho, que é americano. Ela é enteada desde os 12 anos do cara que ele considera hoje ser seu sogro, um homem de cara bolachuda e cabelo branco. Soubemos disso porque ele nos mostrou uma foto no celular e foi atender outra pessoa. “Quem deixa o celular desbloqueado com um desconhecido e sai para fazer outra coisa?”, era só o que eu pensava limpando as mãos sujas de óleo de batata frita.
“Talvez você conheça ele dos tempos de Houston porque ele também trabalhava com petróleo.” A essa altura Luiz já tinha entregado a área em que trabalha. “Ele é geofísico e tem cidadania americana, então estão tentando conseguir um visto para minha esposa como parente dele. Quando decidimos sair dos Estados Unidos pensamos em ir para o Canadá, mas veio a pandemia. Voltar para o Brasil não era uma opção. Aí liguei para um amigo e descobri que ele estava abrindo um restaurante no Porto e tinha vaga para atendente. ‘O que você paga dá para a gente se sustentar na cidade?’ Aí viemos.”
A esposa conseguiu emprego numa empresa que dá suporte para clientes de big techs. Ele pretende fazer a transição para a área do design aqui em Portugal mas está com dificuldade de se inserir no mercado. “Não me importo em receber menos de mil euros, faz parte. Ainda assim está difícil. Não quero voltar para o Brasil.”
Um dos nossos hobbies como imigrantes que encontram outro imigrante que compartilha a nossa história é contar a tragédia que nos trouxe para o outro lado do Atlântico. Rodrigo tinha a dele. “Sofri um sequestro relâmpago. Aí eu falei, ‘quer saber? Vou embora’. Passei a empresa que eu tinha para o meu pai e fui para os Estados Unidos”. Pensei em competir. Dizer que tinha sido assaltado dez vezes no Brasil. É uma conquista que nenhum ouro olímpico seria capaz de tirar de mim, mas meu hambúrguer estava delicioso, um dos melhores que já comi. A cerveja que pedi foi a combinação ideal, gelada e refrescante. Uma Sierra Nevada, pale ale. Rodrigo nos confidenciou que gostou muito da Sierra Nevada quando provou. Não gosta de Indian Pale Ale. Essa ele não gosta. “É muito amarga.”
Você leitor... Muito cuidado com o que você fala para esse cronista. Ele não deixa passar nada!
Imagina Rodrigo encontrar uma conterrânea que conversa até com poste.... 🤭