Em uma quase democracia eu sou quase casado
No final de 2014, Luiz e eu começamos a levantar os documentos para tirar os vistos de residência na Inglaterra, onde moraríamos pelos próximos quatro anos e qualquer coisa. Eu seria dependente dele no processo e para isso precisaríamos provar que somos um casal.
O governo inglês não fez muito estardalhaço. Comprovantes de residência do mesmo endereço no nome dos dois há alguns anos e uma declaração poderiam ser suficientes. Colocar dois gays para morar em outro país com vistos de cônjuge é o tipo de coisa que pode dar um tilt no sistema.
A burocracia é montada para estender tapetes com flores para machos e fêmeas que atravessaram o corredor de uma igreja sob os olhares emocionados de familiares com maquiagem de gosto duvidoso, ternos fora de medida e vestidos daquele tecido que dá cecê.
Estas pessoas recebem um pedaço de papel que vai abrindo portas na burocracia e destravando benefícios. No caso de milhões de pessoas que por uma questão da diversidade e beleza humana resolveram juntar os trapinhos com outra pessoa do mesmo sexo, a burocracia pode criar barreiras, perseguir, matar ou no mínimo coçar a cabeça e olhar para o casal com cara de “o que eu faço com vocês que escaparam do meu livro azul e rosa?”
Para ajudar essas pessoas, porque é um país maneiro, o Brasil decidiu fazer um puxadinho na lei e fingir que somos todos iguais. Em 2011, a partir de decisão do STF, uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo foram permitidas. Em 2013, uma resolução do CNJ permitiu que cartórios realizassem casamentos homoafetivos e os proibiu que se recusassem a fazer. Duas instituições da justiça bateram o martelo reconhecendo que umas pessoas são tão pessoas quanto qualquer pessoa.
Como somos precavidos (e eu um tanto neurótico, um tanto paranoico e um tanto obsessivo), entramos numa manhã do fim de 2014 num cartório em Copacabana para providenciar este papel que faz algumas pessoas gastarem milhares de reais em um bolo de cinco andares.
Nosso tabelião, muito gentilmente, mas com o ânimo de quem faz um teste psicotécnico do Detran, nos perguntou sobre regime de bens, quando nos conhecemos, essas coisas. Saímos de lá estavelmente unidos e fomos tomar uma meia de leite com pão na chapa na padaria mais próxima antes de sair correndo para trabalhar.
Nossos vistos foram aprovados e éramos agora um casal tão reconhecido pelo sistema britânico que o nome do Luiz até aparecia no meu visto, como uma espécie de meu dono.
Neste último fim de semana, o G1 mandou o designer providenciar um banner com a bandeira do arco-íris e o título “Casamento Homoafetivo no Brasil”, com um carimbinho de 10 anos, para celebrar a decisão do STF. No quinto parágrafo do artigo, o advogado Thiago Amparo dá o tom do nosso jeitinho. Segundo ele, “o caso do Brasil é bastante atípico [e] a solução encontrada é um indicativo da dificuldade do reconhecimento dos direitos LGBTs no país e da resistência de parte da sociedade.”
“Mas, gays, as senhoras têm o STF e o CNJ respaldando vocês, querem mais o quê?”, pode perguntar a pessoa incauta ou que no fundo acha que promover igualdade é um ato de solidariedade e compaixão, e não um dever.
Em 2018, quando Bolsonaro foi eleito e o número de casamentos homoafetivos explodiu, não por celebração coletiva, mas por desespero, a Folha de São Paulo publicou uma matéria bem didática sobre o tema e uma das perguntas era: “Isso quer dizer que o casamento homoafetivo é permitido por lei?”
A resposta, amigas e amigos heterossexuais foi: “Não, já que nenhuma lei foi aprovada nesse sentido. O que garante os casamentos e uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo é a jurisprudência.”
Existem propostas para que o casamento homoafetivo vire lei. A Marta Suplicy chegou a apresentar um projeto para mudar o Código Civil, que fala em homem e mulher quando o assunto é casamento. A proposta foi barrada pelo Magno Malta, ex-senador pelo estado que elegeu Fabiano Contarato, um gay assumido para Senado.
O STF se mexeu, o CNJ se mexeu, mas o Congresso não. O Executivo, se puder, faz uma pilha com todas as certidões homoafetivas emitidas até o momento e taca fogo. O Código Civil continua cheirando a Idade Média. Continuamos pendurados por “resoluções”, “jurisprudências” e fingindo que algumas pessoas são tão pessoas quanto qualquer pessoa.