Depois de contribuir para a morte de milhares de pessoas e ser acusado por uma CPI de cometer crimes dignos de grandes ditadores como “crime de pandemia com resultado de morte” e “crime contra a humanidade” (mas que veja bem, ‘pera lá, apesar disso significar extermínio e ataque generalizado à população civil, não significa genocídio), o chefe da 12a maior economia do mundo também está contribuindo para a morte de milhões por fome.
Pessoas catando comida entre pelancas e ossos de boi, restos de peixe e carcaças de frango vendidos em supermercado, carnes mantidas com alarme de segurança para evitar furtos e bandejas entregues vazias que são preenchidas com o produto só depois do pagamento no caixa. Estas cenas de guerra e crise humanitária se multiplicaram nas últimas semanas no Brasil.
O Brasil que sempre foi um exemplo dourado de desigualdade social, agora é uma mistura de Mad Max com suas tempestades de areia no Centro-Oeste e pré-Revolução Francesa com uma população que pede feijão e um rei que diz para ela comprar um fuzil. Além dos efeitos irreversíveis da destruição ambiental, já há quem diga que também estamos nos aproximando de efeitos irreversíveis da favelização no país.
Nunca cheguei a passar fome, mas durante parte da infância pescoço de galinha fez parte do meu cardápio. Pescoço de galinha, arroz tipo 3, 5, 10; ovos, muitos ovos. Não porque morava na casa da Gracyanne Barbosa, mas porque ovos custavam R$ 1,20 a dúzia. Pés de galinha não eram uma metáfora para um rosto marcado pela falta de La Roche-Posay, eram um dos poucos ingredientes da sopa no meu jantar. Insegurança alimentar é o nome utilizado para edulcorar a presença real e cintilante da fome que aparecia toda vez que abria a despensa da cozinha.
Na data religiosa em que não podemos comer carne, os católicos não praticantes da minha família preparavam um prato especial em respeito à minha avó, matriarca de unhas longas pintadas de vinho, encatarrada pelos dois maços de Hollywood vermelho que fumava por dia e devota de Nossa Senhora da Conceição. O prato era estrogonofe de camarão, com camarões que depois de cozidos ficavam menores do que uma castanha de caju torrada. Eu achava aquilo de uma sofisticação só superada pelos fiapos de bacalhau que comíamos no Natal (quando tinha).
Nessa infância em cidade violenta de praças de concreto pintadas com a cor da prefeitura de ocasião, a visita de familiares para buscar 1kg de arroz e uma lata de óleo era relativamente comum. Descobri quase adulto que não gostava de carne vermelha porque a carne que comia quando pequeno era um bife fino, borrachudo e ressecado. Mas existia o bife, que às vezes se juntava às batatas fritas, arroz, feijão e uma salada de alface com tomates pálidos. Lembranças que guardo com certo carinho porque comia uniformizado e de banho tomado assistindo Chaves antes de atravessar uma favela tomada por traficantes para chegar à escola.
O Brasil não tem uma população de vinte milhões de habitantes para alimentar nem a imensidão da população da Índia. Num dos maiores produtores agropecuários do mundo, não há justificativa econômica, de mercado ou qualquer jargão de quem frequenta a seção de Economia do jornal para permitir que pessoas vasculhem um caminhão de lixo atrás de comida. Não é, não pode e não deveria ser difícil garantir três refeições básicas ao dia para a população do país que se orgulha de transformar suas florestas em pasto para exportar boi.
Esta é uma tragédia pessoal e um alerta para todos nós, sobretudo quem é de classe média. Primeiro por uma questão de humanidade, segundo porque ela bate na nossa porta. Com o aprofundamento da desigualdade social, quem tira(va) foto com um alfajor na viagem parcelada para Buenos Aires e compra roupa na Renner para passar o réveillon em casa não vai ficar rico com o aumento do dólar.
Mesmo quem conseguiu fazer uma poupança que chegou às centenas de milhares de reais e está preso ao delírio de achar que é o novo Paulo Guedes não escapa. Se você pensa que tá de boa porque ainda pode pedir sushi e almocinho orgânico no iFood, na big picture de um país com inflação em dois dígitos, você está mais próximo da carcaça do que do filé mignon.
Estamos mais próximos da carcaça do que do filé mignon
Viver no Brasil é sempre se sentir mais próximo da carcaça do que do filé mignon. Melhor dizendo, é se sentir a carcaça.
Não tenho nem palavras pra comentar um texto desse 🙁