Agora que um monte de gente (que até semanas atrás protestava nas redes sociais ‘a pandemia ainda não acabooou’), adotou o ‘meu primeiro show pós-pandemia’, como se ainda não morressem quase dez mil pessoas por dia no mundo e ele ainda não tivesse nem metade da população vacinada, já podemos também nos adiantar e fazer um balanço do estado das coisas no pós-pandemia?
Em maio do ano passado, sobre a pandemia o escritor francês Michel Houellebecq disse “o mundo será o mesmo mas pior”. Na mesma época eu escrevia numa rede que por causa da possibilidade de transmissão do vírus pelo abraço e aperto de mão, “descobriríamos novas formas de nos abraçar”. Oh, boy. Essa é a diferença entre um visionário e um bichinho confiscado pela carência.
Quando enchíamos nossos corações de lives e mensagens de esperança como “a Terra está sarando”, “foi necessária uma pandemia para nos reconectar com o que realmente importa e quem amamos”, Houellebecq dizia “escuta, é o seguinte: ‘não vamos acordar depois do confinamento em um novo mundo. Será a mesma coisa, só um pouco pior’”. Eu, como às vezes faço com aquilo que me incomoda, fingi que não era comigo e fui cantar parabéns em mais um aniversário no Zoom.
O escritor de “A possibilidade de uma ilha” (recomendo a leitura) não forneceu apenas previsão que até agora tem se mostrado certeira. Ele também deu um dado importante: “este vírus não tem qualidades redentoras”. Nada indica que vamos ter um Renascimento depois que a pandemia se der, oficialmente, por encerrada. Muito menos que vai instalar uma nova formação que “nos conecte com o que realmente importa e quem amamos.”
Ao contrário, Houellebecq mandou mais uma. O isolamento permitiu um avanço tecnológico que foi uma ótima desculpa para acelerar a “obsolescência das relações humanas”. Feche os olhos e sinta essa expressão ecoar. Ouço cabecinhas fazendo poooow? Ouço. Se teve alguma coisa ‘nova’ que a pandemia trouxe, então, foi só o empurrãozinho no que já estava caindo de podre.
Graças à ciência e a um mundo muito mais rico do que era há cem anos, nossa discussão meses depois dos confinamentos começarem a se alastrar pelo planeta era se iríamos tomar a Pfizer ou, sei lá, a AstraZeneca. Agora já fazemos planos para os encontros tribais de fim de ano, quando vamos discutir ou sair falando mal daqueles a quem meses atrás prometíamos nos conectar e amar. Como nos bons velhos tempos. Enfim, essa família é muito unida, e também muito ouriçada.
Quanto à Terra sarar, risos. O The Guardian publicou na terça um artigo sobre um relatório da ONU cuja primeira frase é “o mundo está desperdiçando a oportunidade de se "reconstruir melhor" após a pandemia de Covid-19”. Uma tradução bem chinfrim para informar que continuamos cagando no pau. Se os países não seguirem seus compromissos climáticos à risca, alerta o relatório, a expectativa é um desastroso aumento de 2,7C na temperatura.
Se uma pandemia que desligou economias inteiras por meses a fio não deu conta de amenizar a situação, não vai ser desligar as luzes de casa por uma hora no Dia da Terra que vamos conseguir.
Na capa da Time esta semana sobre a COP26, além da cara de panaca do Biden e de saco cheio da Greta Thunberg, constam duas presenças ausentes, representadas por plaquinhas. O chefe da nova fábrica do planeta e o chefe miliciano de uma destruição florestal. De acordo com Joana Portugal, do Programa de Planejamento Energético da Coppe/UFRJ, “Se todos os países se comprometessem com o grau de ambição que o Brasil está propondo atingiríamos um aquecimento global de mais 4C até o fim do século”.
Temperatura instável » inundações/secas » agricultura prejudicada » menos alimentos » mais miséria » mais violência » caos social » beijos democracia. Cenários possíveis para o pós-pandemia real oficial que prometia curar a mãe-Terra.
Aos poucos nos libertando das máscaras, voltando a lavar as mãos de qualquer jeito e a desinfecção das compras devidamente deixada para trás, olhamos para o carnaval onde vamos compartilhar suor e perdigotos de alegria. Estamos entusiasmados para voltar às ruas, à vida plena em sociedade, e catar tudo que tínhamos direito antes da pandemia, mesmo que sejam cacos.
Tá afiado, hein? Eu acho exatamente isso ai. Zero ilusão de reconectar, curar, aprender. As desigualdades aumentaram, com alguns novos bilionários abocanhando fatias obscenas da riqueza mundial, a destruição foi intensificada, as comunicações pioraram, a desinformação e o negacionismo se multiplicam e a tecnologia só nos faz trabalhar mais pra ganhar cada vez menos.
Mudança global com a humanidade? Só se for acometida pelo mesmo evento que os dinossauros.