Não tem nada em virgem. O signo é áries, ascendente e Vênus em gêmeos. Mercúrio em áries. Lua, Saturno, Urano, Netuno, tudo em capricórnio. Marte em aquário. Júpiter em touro e Plutão em escorpião. Nenhum planeta em virgem. Nada. Só um bolo na garganta que virou um pigarro insistente, que viraram cliques na hora de engolir saliva. E uma vontade inadiável de organizar a vida toda em excel, resultado de uma breve mas marcante passagem pela área de planejamento.
“Engraçado, você não parece ariano”, dizem algumas pessoas quando revelo o crime de ter nascido entre o fim de março e o fim de abril. 8 de abril para quem quiser mandar presentes. Tenho wishlist na Amazon e na Fnac, e uma planilha em excel com as coisas que gostaria de comprar. Para qualquer pessoa que gosta de astrologia, ariano é satã tacando fogo na Terra. Bolsonaro é áries.
Assim que percebo a mistura de arrependimento e desgosto, horror e espanto se formar no rosto do interlocutor, entro com uma cartada para conter danos. Falo que sou um ariano analisado, como se limpasse o sangue no chão diante da testemunha.
Uma tentativa de dizer que aprendi a contar até vinte e responder “claro, claro, é isso mesmo” para amigos prestes a fazer uma cagada porque a lua em câncer mandou que eles corressem na direção do precipício. “A vida é única e só assim saberemos voar”. Claro, claro, é isso mesmo. Que aprendi a disfarçar que prefiro séries e áudios de Whatsapp a algumas pessoas. Séries e áudios eu posso acelerar, pessoas não.
No meu Manual de Doenças, e o algoritmo do Google está aí para me dar razão, só existem doenças terminais. Pensei: bem, se esses cliques continuarem, qualquer dia vou comer um Mcdonald’s, minha garganta vai travar e vou cair duro antes de ter a oportunidade de chegar nos nuggets de frango. Luiz vai me encontrar com a cabeça caída na mesa sobre um papel engordurado escrito “amo muito tudo isso”.
Depois de uma crise de bronquite, fui ao otorrino. Era o especialista mais próximo do meu pulmão disponível para o dia seguinte que poderia, talvez, trocar o remédio de bronquite que desapareceu das farmácias brasileiras porque não renovamos a patente, e que em Portugal jamais existiu. Aproveitaria para confirmar com ele que o clique na garganta era uma doença degenerativa, diagnóstico que já tinha feito em casa por conta própria.
Expliquei tudo em ordem cronológica, começando com “meses atrás…”, e antes dele concordar com minha sentença de morte, perguntou, sem tirar os olhos do computador, se eu estava estressado. Pensei em abrir os jornais para ele, mostrar minha conta bancária, falar sobre um vírus que continua no ar infectando milhares de pessoas todos os dias há dois anos, o século XXI, o declínio da civilização ocidental, fazer uma pequena apresentação sobre a vida de um freelancer, talvez abrir a janela do consultório para ele ver o mundo lá fora. “Sim, ando um tanto estressado”, respondi.
Quase não bebo, parei de fumar há mais de um ano, não uso entorpecentes, portanto, sim, assisto com aflitiva sobriedade o estresse se manifestar na minha vida em 4k, UHD, numa tela LED da LG. Ele é tão cristalino e presente que está ao meu lado nesse momento no consultório, se chama Gerônimo e sugere que eu enfie a caneta que o senhor recebeu de brinde da Bayer nos seus olhos.
Examinou meus ouvidos e com uma frase aniquilou um dos poucos prazeres que me restavam: enfiar o cotonete bem fundo no ouvido até os olhos revirarem e eu sentir uma moleza nas pernas. Os cliques. Senti que devia dar mais elementos sobre meu trágico histórico de saúde na região otorrinolaringológica. Sabia que aos dezesseis operei um tumor no ouvido esquerdo? Ele não era em forma de ervilha, de feijão, de grão de bico, tinha a forma de uma casca de cebola que ia envolvendo meu ouvido médio, abraçando-o e se expandindo lentamente até causar uma inflamação no cérebro. O que te acolhe e envolve, também te devora. Apelei para a baixaria das associações fáceis.
“Abra a boca e coloque a língua pra fora”. “Ahhhhhh”. “Não precisa fazer essa força toda…” Não é força, é dedicação. “Sua garganta até que está muito bem”, disse seguindo para o nariz “Só tem um…” Eu sabia! Só tem um o quê? Uma derrocada lenta e dolorosa? E meus planos? O mestrado? Fuck it. Vou passar o dia entre febre e seriados, checando os gânglios no pescoço. “…só tem um desvio muito acentuado de septo num nariz muito pequenino.” Ah, a doçura do português de Portugal. “Mas e os cliques, o que significam, que nome dar a eles?” “Estresse. Vou receitar um calmante bem fraquinho.”
Mandei a foto da receita para minha analista. “Esse dia chegou. Rá!” Agora não há mais perigo, pessoal, além de analisado, sou um ariano medicado.
Dos melhores que você já escreveu! Ele recomendou fazer algo em relação ao desvio de septo ou deixa quieto? Descobri que também tenho, veja só, quando comecei a cantar. Vai ficar lá.
E sobre o remedinho, depois podemos trocar receitas e comentar efeitos. :)
Perfeita análise - do otorrino hahaha