A Amazon nos colocou mais perto dos Jetsons. Mas ainda continuamos muito próximos dos Flinstones. Obrigado, Rita Lee, por sempre alcançar as metáforas mais simples e certeiras para resumir o que gastamos livros, discussões e filmes tentando expressar. Entre os muitos lançamentos que a empresa fez duas semanas atrás estava o Astro, um robô assistente que te segue pela casa como um poodle.
Meu novo hobby é acordar e checar se dormi bem. Quem dá o veredito sobre minha noite de sono é o aplicativo do meu relógio. Ele considera horas dormidas, o tempo que acordei durante a noite, as horas de sono profundo e de sono leve e lança uma pontuação. Vai além: diz como estou em relação ao sono dos outros usuários. “Esta noite você dormiu melhor que 75% dos usuários.” E já levanto me sentindo um vencedor.
Depois de passar quase um ano usando um Apple Watch com a tela trincada, presa por uma fita durex, ele morreu e paguei €24.99 para a Xiaomi dizer se durmo melhor que pessoas que nunca vi na vida.
De uns dois meses para cá, criei outro hábito: passei a empilhar num canto da escrivaninha os livros e as National Geographic que terminei de ler. As razões são muitas, mas no fim das contas é tudo uma questão de praticidade e preguiça. Ficam todos num lugar só e no fim do ano faço uma limpa do que vai pra estante, do que vai pra doação e do que vai pro lixo.
Mentira. Não jogo livro fora. Só quis provocar quem acha que livro é um objeto sagrado que precisa ser reverenciado como uma vaca indiana, enquanto folheia com o nariz nas páginas antes de dizer com os olhos fechados de prazer e os coração cheio de sentimentos puros “hummm, amo o cheirinho do livro.” (Essa pessoa, pode reparar, leva tão a sério a sacralidade desse objeto que só toca num livro uma vez a cada dois anos. E quando perguntada sobre o que significa a leitura para ela, nos presenteia com um “ler é viajar sem sair de casa”. E suspira.)
A outra razão da pilha é que bato o olho e tenho uma ideia do que andei lendo e para onde posso ir. Romance, crônica, poesia, não-ficção. Mas de onde? De quem? De quando? É um bom exercício de diversificação.
Se tivesse dinheiro, seria um Inspetor Bugiganga. A louça seria lavada por uma máquina. Um robô aspiraria o chão. As luzes seriam acesas e apagadas sozinhas na hora certa ou com um clique no celular, o ar condicionado/aquecedor a mesma coisa. A geladeira faria as compras que seriam entregues na minha porta. O Astro andaria atrás de mim recebendo ordens sobre tarefas pendentes que seriam projetadas no Painel touch. Enfim, teria uma casa inteligentíssima e muito mais tempo de sobra para me angustiar que deveria estar escrevendo, lendo, vendo séries e produzindo porque agora tenho muito mais tempo livre.
Conectado ao relógio que transmitiria minhas ondas de emoções, Astro me lembraria de que talvez seja o momento para eu tomar um remedinho que me deixe mais alegre e calmo. No Painel, uma tela grande e fina desenvolvida pela Samsung, afixado na parede em cima da mesa de escritório onde um dia esteve um mural de cortiça com fotos do tempo em que meu .mp3 armazenava 128MB de música, estariam todas as informações e gráficos sobre meu desempenho como ser humano.
Na categoria Saúde apareceria uma imagem minha de corpo inteiro, girando como um personagem de videogame, e ao lado todos os números do meu último hemograma (e comparativos com os anteriores), a oxigenação do sangue e o resultado do eletro que meu relógio acabou de realizar. Na categoria Cultura estariam os livros que li e um mapa mundi apontando o ano do lançamento, a origem dos autores, a etnia, o gênero, a orientação sexual. Tudo conectado ao Comitê Central do Partido Comunista Chinês e ao Comitê Central do Partido Capitalista do Vale do Silício.
No fim apareceria a mensagem: “Parabéns, Thiago, você é um leitor que preza a diversidade! Mas ainda faltam caminhar 5.374 passos hoje e segure a onda nos doces. Seu desempenho humano está melhor que 43% dos usuários”.
E Astro me traria os tênis de correr.
Estou precisando de um relógio assim...rs
Eu, quando criança, nunca gostei muito de desenho animado, exceto Os Jetsons. Isso faz todo sentido nessa nossa atual vida sem sentido.