Se alguém chegasse e dissesse “meu presidente é um saco de bosta ambulante”, você poderia achar que não passa de uma metáfora ruim ou uma piada infantil. Com sua foto ligado a aparelhos e a barriga tão inchada de excremento quanto é sua cabeça, Bolsonaro transformou nossa timeline, nossas telas, a televisão, os jornais e o país no programa sensacionalista que só ele e os zumbis que ainda o apoiam assistem. De quebra, o circo escatológico desviou o assunto das acusações de prevaricação que ele enfrenta. Como um dementador, que vai sugando tudo que tem cheiro de vida, Bolsonaro tirou da gente até o prazer banal de elaborar metáforas ruins e fazer piadas infantis.
Se um amigo britânico vier me dizer que o primeiro-ministro dele é um saco de bosta, não vou conseguir rir. Vou responder ‘sei como é, o presidente do meu país foi internado dias atrás cheio de bosta acumulada’. ‘Não, cara, era uma metáfora. O primeiro-ministro é só ruim mesmo’. ‘No nosso caso, gostaria que fosse uma metáfora, mas o intestino do presidente reteve toda a merda que ele não conseguiu colocar para fora. É… pensando bem, aqui tem um diagnóstico clínico, mas também uma metáfora.’ Não é pesadelo, não é piada de mau gosto, é a realidade grotesca compartilhada em todos os canais de informação. Ele tornou literal o que é ser um saco de bosta e o que é estar enfezado.
Saiu aqui em Portugal o livro ‘A Anomalia’, do francês Hervé Le Tellier. Deve chegar no Brasil daqui a pouco. Vencedor do Goncourt ano passado, o principal prêmio da literatura francesa, o autor levou para casa 10 euros, que é a recompensa dada ao escolhido. Com a repercussão e o prestígio que o prêmio rende, a outra recompensa é a garantia do escritor vender umas 400 mil cópias do livro.
A França tem uma população de 67 milhões de habitantes. 400 mil dão uns 0.6% da população. Quando foi a última vez que um Jabuti vendeu o equivalente a 0.6% da população brasileira (na casa dos 210 milhões)? Hoje o sortudo teria que vender cerca 1 milhão e 260 mil cópias. Foi uma pergunta que me fiz porque regra de três é a única coisa que aprendi a fazer nas aulas de matemática (supondo que essas que eu fiz aí em cima estão certas).
‘A Anomalia’ conta a história de alguns passageiros de um vôo Paris x Nova York em março de 2021. O vôo passa por uma fortíssima turbulência na tempestade da década, mas consegue pousar e os passageiros seguem suas vidas. Três meses depois, o controle de tráfego aéreo americano força o pouso de um vôo da mesma rota Paris x Nova York em uma base militar. Este vôo é o mesmo de três meses antes, com os mesmos passageiros, mesma tripulação e passou pela mesma turbulência. É uma espécie de falha na matriz que duplica o avião e todo mundo que está a bordo.
A partir daí surge um mundo de implicações e interpretações. Implicações éticas, interpretações filosóficas, matemáticas, físicas, biológicas do evento. Os passageiros não são gêmeos, não são clones. São exatamente a mesma pessoa duplicada, com a mesma personalidade, mesma memória e até três meses antes eram uma única pessoa. O que os diferencia agora é o intervalo de tempo entre março e junho. Neste período, os passageiros do vôo de março passaram por experiências que os de junho não passaram. Todo o universo em volta é o mesmo e apenas um, que eles precisam dividir, mas que talvez não tenha condições de acomodá-los.
Como o livro se passa em 2021 e se relaciona com eventos reais, mas foi publicado em 2020, por suposição ou preferência para a graça narrativa, o autor colocou Trump como presidente em 2021. Em uma passagem, um entrevistador de televisão faz piada dizendo que a duplicação poderia ter acontecido com o avião presidencial. A plateia gargalha e eu sinto um ligeiro frio na espinha com a hipótese disso acontecer com Bolsonaro, que, aliás, é mencionado no livro. Tirando a ficção da coisa, na hora me restou a tentação de uma metáfora ruim. Reeleger Bolsonaro é fazer pousar de novo o mesmo avião, com o mesmo saco de bosta, com a mesma personalidade e com um mundo que talvez não seja capaz de suportá-lo.
Estava curioso para ler o livro até o Bolzo aparecer nele. Medo.
Caraca! Que texto hein! Concordo com a Ana Medeiros...está incrivelmente bem costurado. E ainda me deu uma puta curiosidade de ler o livro. Ahhh e.... #forabolsonaro..... só pra não perder o hábito hahahaha