O primeiro ano do mestrado terminou e minha média geral foi o equivalente no Brasil à nota 8. Aqui em Portugal, a classificação vai de 0 a 20, então fiquei com 16. A nota 8 me persegue, como uma característica de identidade, e já foi assunto de sessões de análise. Thiago é um cara nota 8. Então esse resultado veio mais para corroborar uma constatação do que como um motivo para celebrar ou ficar desapontado.
Justa ou injusta, se define ou não inteligência, a nota ainda é uma medida para avaliar competências, habilidades e pode ser o passaporte ou entrave para algumas ambições. E a nota 8 é reveladora. Apesar de estar na região do ótimo, encostando no excelente, ela não é excelente. Nem chute na trave chega a ser. Esse é papel do 9. Ela basicamente quer dizer: temos aqui uma pessoa que não é burra, mas também não é brilhante.
É um agrado, mas também uma frustração. É como morar num prédio de frente para a praia, mas em um apartamento de fundos. Você quase chegou lá. Alegre-se com o que tem, que é bastante coisa. Mas em vez de ter uma vista desafogada para os fogos da praia de Copacabana, sua vista será para a comemoração na sala do vizinho do prédio de trás, que na prova ficou com 7.
Preciso reconhecer o aspecto libertador de compreender que não sou a última coca-cola no deserto do mundo acadêmico e intelectual. Não fui premiado com o talento inescapável dos grandes pensadores. Leio devagar, sou dispersivo, minha capacidade de abstração vai até a página dois e meu raciocínio às vezes parece um fusquinha 67 tentando subir uma ladeira. Há momentos, que ocorrem com mais frequência do que gostaria de admitir, em que ele simplesmente entra em ponto morto. Um barquinho que eu solto e deixo ser arrastado pela correnteza.
A escrita é meu Fantasminha Camarada, que faz aparições periódicas desde que me entendo por gente. Aos seis anos ganhei um livro de ilustrações que convidava a criança a escrever uma estória a partir das imagens. Lembro vagamente de escrever uma estória sobre um rato e um queijo. Aos dez comecei a escrever sobre uma aventura de crianças na selva. Aos quatorze escrevi um livrinho sobre uma dupla de amigos em que um deles morria de AIDS. Aos dezesseis escrevi a única coisa que foi publicada: uma poesia ruim. Minha empolgante e diversa obra literária se encerrou aí.
Aos vinte fingi que escrever não era um problema meu e fui ganhar (pouco) dinheiro no mundo corporativo. Aos trinta e quatro estou aqui tirando uma casquinha de ferida do meu joelho (não é a varíola dos macacos), escrevendo este texto e lendo uma matéria da CNN Portugal com o título “Stressados e inseguros financeiramente: a realidade dos jovens portugueses”. Jovens portugueses, recebam meu abraço solidário. Desde que escrevi sobre um rato e um queijo que minha conta bancária permanece no mesmo estado. A única coisa que subiu foi minha pressão. Portanto, estamos juntos.
Mas se hoje alguém me perguntar o que quero ser quando crescer, a resposta é certa: escritor. Acontece que o superego de quem tem intenções de escrever como ocupação principal geralmente opera de maneira muito eficaz e é uma freira com a palmatória erguida. Só saia de casa se for pra ser Machado de Assis na primeira frase. Se não, poupe a árvore de uma morte inútil. Não existe espaço para a dignidade asseada da nota 8. É possível que já tenham percebido, mas temos aí uma confusão armada.
De um lado está a compreensão das próprias limitações, mas se bem espremidas, podem dar um caldo. De outro a Virgem Santíssima do Superego dizendo “Não pode não”. No meio está o Fantasminha Camarada chamando: “vem”. É um cabo de guerra onde uma pessoa pode passar anos, como se não houvesse mundo além da excelência.
Aliás, só mais uma observação: recebi mais inscrições nesta newsletter nos meses em que estive calado do que no período que estava postando com regularidade. É o superego me mandando ficar quietinho? Talvez. Vou escutar estes sinais? Prefiro não. Se me lembro bem, foi Hilda Hilst que disse alguma coisa do tipo: “Já estão escrevendo tantas bobagens por aí que decidi escrever as minhas”.
Só acho que deveria seguir os passos de Ms. Hilda.
Se alguém me inspira a ler, só por isso essa pessoa já seria nota 8. E no seu caso tem um plus.....seus textos nota 10 !
Por coincidência semana passada comentei sobre esse seu talento, e mencionei como exemplo um dos meus favoritos...o texto da Beth rs. No dia seguinte entrou o e-mail da newsletter, depois de um longo período de silêncio.
Só continue, por favor! Seus textos são mais que necessários. São e sempre foram nota 10 pra mim. ❤